25.2.07

PAZ – SÓ QUANDO HOUVER AMOR

Eglitz

Justino vaga pela cidade tentando encontrar um pouco de paz para a sua alma angustiada. A sua mente ferve com as lembranças de vinte anos atrás. Na época ele tinha somente nove anos de idade. Desde então é perseguido por pensamentos de ódio, rancor, e sobrevive unicamente por uma idéia fixa de vingança contra o homem que abusou e violentou a sua mãe e sua irmã.

Uma menina cruza por ele na calçada e lhe entrega um pequeno folheto que diz: “Se você está desesperado, sem direção, e sem paz pela vida, nós temos um conselho que poderá te ajudar”! Não enxergamos o que o mundo enxerga, mas vemos o que ele não vê!
Os videntes cegos.


A mente de Justino se desvia um pouco daquele turbilhão que o envolvia, e se liga na curiosidade de conhecer um pouco o que o futuro lhe reserva. Com poucos passos pela calçada ele chega ao endereço que o papel indicava.

O portão estava aberto e ele entra. Um perfume suave de sândalo exala pela porta, do incenso que queima no interior da sala. Logo ele enxerga uma senhora aparentando uns cinqüenta anos, sentada em uma cadeira, que gentilmente o convida para se sentar em um sofá em sua frente. O rosto da mulher lhe transmite algo que ele não experimenta já há muito tempo: Paz. Os olhos dela não têm luz nenhuma, somente uma pele branca os recobre por completo. Ele senta na poltrona, e a leveza de espírito daquela mulher em sua frente, lhe traz um desejo imenso de chorar. Não por pena dela, mas, porque consegue ver um pouco da escuridão em que sua própria alma está mergulhada.
- Você anda distante da luz meu filho – Lhe diz a mulher vidente. – A sua alma sofre na escuridão porque não consegues afastar os pensamentos de vingança da sua mente.
Justino interrompe a vidente e pergunta:
- Eu preciso saber se vou conseguir alcançar o meu objetivo? Conseguirei encontrar quem estou procurando?
A mulher lhe responde:
- Sim meu filho, você encontrará quem está procurando. E junto com esse encontro virá também uma grande surpresa.

Justino levanta-se de um salto da poltrona e quase grita de felicidade, por saber que conseguirá encontrar aquele homem. Ele fica feliz por saber que vai vingar-se. Só isso importa agora. A sua luta e procura não terá sido em vão.
A mulher interrompe seus pensamentos de felicidade quando diz:
- A sua paz de espírito é a coisa mais importante meu filho. Você a encontrará quando houver amor...
Ele deixa uma nota de dinheiro em cima da mesinha, agradece pelo conselho, e sai pelo mesmo lugar que entrou.

Flaches de lembranças lampejam em sua mente a todo instante.

Retrocedendo no tempo vinte anos, vamos encontrar Justino com nove anos. Ele vive com seus pais e sua irmã em uma localidade do interior. Uma comunidade mesclada de descendentes de alemães, portugueses e brasileiros. Quase todo mundo ali se conhece. Ultimamente a comunidade vem perdendo a paz, por conta de arruaceiros que se instalam por ali trazidos por força do próprio desenvolvimento da pequena cidade. Empresas terceirizadas vêm para o pequeno município, para promoverem infra-estrutura para: luz, água, esgoto e calçamentos.

Juntamente com essa leva de pessoal veio para ali, um dos tipos mais perversos daquele tempo. Adriano. Um marginal desordeiro que veio acuado das grandes cidades se esconder ali na pequena comunidade.

Adriano aterroriza os moradores da localidade prevalecendo dos seus um metro e noventa de altura, e sempre usando um revolver e uma faca prateada atravessada na cintura. Ninguém se arrisca a enfrentá-lo. Nem mesmo os poucos policiais que ali residem. Ele age livremente e impune, jogando gracejos e até mesmo bolinando com mulheres casadas, que obrigam-se a aceitar a situação para não ver os seus maridos serem perseguidos por aquele marginal.

Justino mora no interior do município, juntamente com seu pai, sua mãe e sua irmã que vai fazer 14 anos. O seu pai trabalha para os agricultores do local, que requisitam os seus serviços para ajudá-los a arar a terra e para plantar as sementes. Não é uma boa vida, mas nunca faltou comida para sua família. Às vezes Justino vai levar a comida que sua mãe prepara para seu pai, e fica imaginando com as mãos nos braços do arado, se um dia também levará aquela mesma vida de seu pai?... E no seu pensamento ainda infantil, fica feliz por saber que um dia poderá ser como aquele homem ao qual muito admira.

Um dia quando Justino e sua mãe vêem até a vila para pegar farinha, encontram-se com Adriano que faz gracinha para a mãe de Justino que não gostou do que ouviu. Adriano passa a mão pelos cabelos de dona Sofia e percebe que o menino lhe olha torto. Quando Justino mete-se entre os dois para proteger sua mãe, recebe um tapa em sua nuca, daquele brutamonte.

Justino espuma de raiva, mas não pode fazer nada, a não ser seguir com a sua mãe que o arrasta pelo braço para evitar que o filho apanhe mais. Adriano em tom ameaçador esbraveja:
- Oh piá de mérda, qualquer dia eu vou lá na tua casa visita a tua mãe, e se tu se metê a bobo vou te surrá de cinta ouviu?...
Justino comenta com sua mãe:
- Você escutou o que ele falou mãe? Ele disse que vai lá em casa. Eu vou contar isso para o papai!
- Não filho. Não vá dizer nada do que aconteceu ao seu pai. Isso poderia incomodá-lo e não seria nada bom.
- Mas você ouviu o que ele disse... Ele vai lá em casa, e vai fazer mal para você e a mana. – Repete Justino. Mas dona Sofia tenta acalmar o filho.
- Não filho. Ele disse isso só para te deixar nervoso. Ele percebeu que você ficou bravo. Faça o que sua mãe disse. Não vamos dizer nada ao papai para não aborrecê-lo ta? Promete?...
- Ta bom. Mas eu não gosto nada dele. Eu queria matar ele.

***

Alguns dias passam.

Justino está acabando de recolher os últimos pedaços de lenhas para o fogão naquela tarde de verão. Enquanto a sua irmã termina de limpar a casa. A sua mãe já cuida dos preparativos para a janta. É costume todos esperarem de banho tomado o seu pai que chega cansado todos os dias, para depois reunirem-se na mesa.

Mas a rotina nessa tarde foi quebrada pela presença indesejada de Adriano. Quando Justino vê o marginal ali, sente que algo muito ruim pode acontecer.
Adriano desce do cavalo o amarrando no tronco da árvore em frente a casa, e se encaminha em direção a entrada arrastando as esporas no chão. Justino deixa cair às lascas de lenha no chão, enquanto tenta bloquear o caminho para aquele homem não entrar em sua casa.
- O que você quer aqui? O meu pai ainda não chegou do trabalho.
- E eu quero alguma coisa com teu pai, guri?... Eu quero é com a tua mãe. Cadê ela?

Justino vê que não conseguirá deter aquele monstro, e pensa em correr para pedir ajuda, mas é detido imediatamente por Adriano que o segura pelo braço o obrigando a entrar. Sofia se assusta pela veemência do empurrão que o filho leva enquanto Adriano berra:
- E fica aí, bem na minha frente piazinho de bosta! Se você se mexê eu vou-te capá com essa faca ouviu? – Adriano tira a faca da cintura e a põe na mesa em sua frente. Ele ordenou que a menina também sentasse junto a seu irmão no canto, e que nem um dos dois saisse dali. Os dois estão apavorados. Adriano chama Sofia para junto dele. Ela também está apavorada e obedece, pois teme pelos seus filhos e por ela mesma.

A irmã de Justino baixa a cabeça negando-se a enxergar o que está prestes a acontecer.

A mente de Justino fervilha de tanto ódio, mas não consegue fazer nada contra o animal. Adriano está agora com o revolver na mão. Justino teme pela vida da sua mãe, e tenta rezar baixinho, mas não consegue se concentrar.

Ele vê agora Adriano colocar a mão por debaixo do vestido da sua mãe, depois ordena que ela vire-se de costas pra ele e abaixe-se.

Naquele momento o inferno visita o menino Justino. O inaceitável, o indizível, o bizarro e o terror fazem descer uma nuvem escura sobre a cabeça daquele menino indefeso, e as pessoas que ele mais ama na face da terra são torturadas em sua presença.

Ele vê Adriano penetrando a sua mãe vorazmente feito um animal. Depois a empurra para o mesmo canto em que Justino se encontra, e ordena que a sua irmã venha até ele agora.

Sofia implora pela filha que ainda é virgem, mas recebe um tapa na cara que a joga de volta ao canto, onde ela cai sentada. A única coisa que lhe resta fazer agora é abraçar-se ao filho que está em choque.

A menina é arrastada pelos cabelos e obrigada a ficar na mesma posição em que à mãe estava. E assim é violentada inescrupulosamente pelo monstro.

Alguns minutos depois, os três estão sozinhos. Enquanto dona Sofia tenta manter-se forte e ajudar a sua filha que sangra muito, pede para Justino não falar nada para seu pai, mas esse esbraveja:
- Você também não quis que eu contasse aquele dia, e olha só o que deu! Eu vou contar sim ao papai!
- Filho, você não entende. Não vê que esse monstro pode matar seu pai? É o único jeito de nós termos ele conosco.

Nesse instante Justino percebe que seu pai está chegando a casa, e sai correndo ao seu encontro contando o que aconteceu. Depois de constatar o estado em que se encontram sua mulher e filha, ele sai em direção à vila em busca de Adriano.

Dona Sofia recrimina o filho por ter contado o que houve ao pai, pois era isso que ela temia que acontecesse.
- Você viu o que fez? Agora esse bandido vai matar o seu pai!
Justino sai em disparada atrás do seu pai.

Naquela noite, Justino enfrentou mais um revés do destino. Pois viu o seu pai ser surrado e humilhado por Adriano na frente de todas as pessoas que estavam reunidas no clube da vila.

Ao pedir satisfações do que houve a Adriano, este agarra o pai de Justino e o tira para fora a socos e ponta pés.

A ânsia de vingar-se pelo que o bandido fez a sua família não surtiu efeito, e ainda teve que amargar a humilhação por ter apanhado. Volta para casa sentindo-se o pior dos homens, pois não consegue nem proteger a sua família. Ele consegue ver a decepção estampada na face do seu pequeno filho que se esforça em ajudá-lo a chegar até em casa. – Como ele vai conviver com toda essa humilhação? Agora todos vão rir dele. – Com toda aquela carga de desgraça que se abateu sobre ele, sentiu-se como um verme que não merecia viver mais na terra. Nem pensou no grande mal que estava fazendo a sua família, quando levantou dentro da noite, e com uma corda no pescoço pôs fim a própria vida. Não estava presente quando eles foram atacados, e agora foge para sempre.

A família nunca mais foi à mesma depois que o pai de Justino morreu. A revolta que se instalou na mente do menino fez com que ele crescesse com um sentimento de vingança terrível a respeito do homem que provocou tudo aquilo. Um dia ele tinha certeza que ficaria frente a frente com Adriano e o mataria. Era tudo o que ele pensava e queria.

Mas a desgraça ainda não estava completa. O pior para Justino ainda estava por vir.

A sua mãe descobriu que havia ficado grávida de Adriano. E agora Justino teria que conviver com seu meio irmão que jamais o deixaria esquecer o que houve. Toda vez que ele olhava para o irmão, lembrava de Adriano, pois o menino era a cara dele. Os pais de Justino eram de cor branca e, portanto, Justino e sua irmã eram igualmente brancos. Mas o menino era bem moreno, pois Adriano era negro.

Justino nutria certo ódio pelo irmão que por incrível que pudesse parecer era muito ligado a ele. Por várias vezes passou pela cabeça de Justino, matar o irmão. Mas sempre quando ia consumar o ato, sentia pena da criança, e não conseguia fazer.

Justino cresceu, mas a sua sede de vingança não passou. Mesmo em sua juventude apresentava uma ruga em sua tez que se mantinha sempre franzida denunciando o grande descontentamento que ele carregava consigo.

Adriano depois do acontecido, não demorou muito tempo por ali. Sumiu do vilarejo e nunca mais apareceu.

Depois que passou quase vinte anos, Justino tem uma pista de Adriano. Descobre que ele vive em uma outra cidade bem distante dali, mas no mesmo estado.

Ele junta tudo o que pode e viaja para a dita cidade. Ninguém ficou sabendo dos seus planos. Para todos os efeitos ele estava indo tentar emprego numa outra cidade.

Justino não havia percebido na sua ânsia por encontrar Adriano, que não seria tão fácil assim. Em uma cidade grande não é tão fácil encontrar alguém que não se tem muitas informações como no caso dele, um nome apenas.

Por isso Justino está andando a esmo naquela cidade. O dinheiro acabou. A última nota que ele possuía, deixou para a vidente que lhe deu o conselho. Ele pensa que terá que arranjar algum trabalho se quiser sobreviver.

Ao passar em frente a uma fabrica de móveis ele lê em uma placa: “Precisa-se de ajudante para serviços gerais”.

Imediatamente ele entra e se oferece para trabalhar. Uma moça do departamento de pessoal pede para ele aguardar um pouco, pois a outra moça que faz a seleção ainda não chegou.

Quando ela chega, Justino fica deslumbrado com a beleza e a simpatia da moça. Ela também ficou bastante impressionada com ele. Se existe amor a primeira vista, pode-se dizer que foi o que aconteceu com Justino e Eliane.

Ele foi contratado para o trabalho, e logo também estava namorando aquela bela moça.

Justino mantinha segredo quanto ao seu verdadeiro motivo de estar ali, mas Eliane confidenciava a ele tudo o que se passava com ela.

Eliane conta para Justino que o verdadeiro dono da fabrica de móveis é o seu pai, e que ele encontrava-se muito doente.
Ela o convida para passar um domingo em sua casa, conversar um pouco com seu pai para distraí-lo. Justino observa que ela ama muito o seu pai.

Quando ele chega à casa de Eliane, quase tem um desmaio na frente de todos quando é apresentado.

Justino disfarça o choque que teve ao ver ali em sua frente o mesmo homem que havia causado toda aquela tragédia em sua família.

Sim, ali estava Adriano. Mas ele não reconhecia Justino e nem podia, pois agora estava cego e paralítico, preso a uma cadeira de rodas.

Adriano também jamais perceberia que ali em sua frente, de mãos dadas com a sua filha, estava aquele menino que havia presenciado uma de suas barbáries.

Justino pensa consigo, que a vida está lhe aprontando mais uma agora. Quem diria que haveria de vir se apaixonar pela filha do homem que ele mais odiou a vida toda.

Depois desse dia Justino se esforçou pra manter as coisas como se nada tivesse acontecido. Eliane não percebeu nada, e a cada dia que passava demonstrava estar mais apaixonada por ele.

Em um outro dia, enquanto esperam o almoço sentados à beira da piscina, Adriano pede para Justino, que se sente mais próximo a ele, e começa lhe confidenciar que tem a sua alma amargurada por todas as coisas ruins que praticou no passado.

E quando ele se reporta a um acontecimento que mais o amargura hoje, Justino não consegue evitar que escape uma lágrima dos seus olhos. Pois é justamente pelo mal que causou aquela família que hoje ele tem o maior arrependimento.

Eliane grita para eles da janela que o almoço está pronto.

Justino empurra a cadeira de rodas de Adriano, e lembra das palavras da vidente. “Sim meu filho, você encontrará quem está procurando. E junto com esse encontro virá também uma grande surpresa... A sua paz de espírito é a coisa mais importante. Você a encontrará quando houver amor.”
Fim...

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